A mesa está posta, rodeada por 23 cadeiras, em um cenário que ocupa o palco. No grande vídeo ao fundo, uma mesa semelhante e 23 cadeiras também estão visíveis. Ingredientes para um almoço em família estão prestes a ser trazidos, como pratos, copos, talheres e guardanapos. Em cena, estão Raquel André e Tonan Quito; no vídeo, ela, ele e membros de suas famílias, amigos e colaboradores deste projeto… Em Começar Tudo Outra Vez, que estreia na Culturgest no dia 25 de junho, o teatro investiga a vida, permitindo que ela se reinvente através dessa arte.
É a primeira colaboração entre os atores e encenadores, que trouxeram seus próprios estilos artísticos para esta produção. “A minha linguagem tem muito a ver com documentar o real, integrar pessoas reais na ficção; e o Tonan aborda a ficção como forma de entender a realidade. O vídeo é onde unimos esses dois mundos. Nossa família ampliada encena cenas de peças já trabalhadas pelo Tonan”, explica Raquel André. Nos diálogos familiares, ouvimos ecos de O Ginjal, As Três Irmãs de Tchekhov, Ricardo III de Shakespeare e Entrelinhas, criada por Tonan Quito e Tiago Rodrigues. Sondam-se relações de parentesco, com cada pessoa em torno da mesa desempenhando um papel – no teatro, assim como na vida, mesmo que nem sempre sejam os mesmos.
O almoço em família oferece cozido, mas no palco da Culturgest servem-se memórias e questionamentos sobre o futuro. “O que acontece quando alguém nasce? Como foram os nascimentos dos seus pais? E os seus próprios?”, questiona Raquel. “E se eu decidir não engravidar? E se sentir um vazio depois?”. Todas as perguntas são válidas naquele espaço; todos os cenários podem ser explorados. Raquel e Tonan estão prontos para começar, recomeçar, sempre. “Vemos o teatro como uma maneira de ensaiar a vida. No teatro – e na arte em geral – podemos testar perspectivas ou visualizar ângulos que ainda não percebemos na vida. Algumas são invisíveis, outras podem nunca ter existido”, diz a atriz e encenadora. “O título do espetáculo reflete essa ideia de recomeço e surge do próprio processo teatral. Sempre que você começa de novo, já não se repete da mesma forma, existe uma chance de mudança. Assim como ao nascer uma criança, tudo muda. Surge uma nova organização e novos papéis, toda uma aldeia. E sempre há uma possibilidade de fazer melhor, uma reinvenção, de certa forma. O teatro representa essa grande metáfora do mundo”, acrescenta Tonan.
Em Começar Tudo Outra Vez, ficção e realidade se entrelaçam para explorar como seriam as coisas se, em vez de encenarmos mortes comuns nas histórias, falássemos sobre nascimentos. “Os fins são considerados mais importantes que os começos”, afirma Raquel em cena. “Na história do teatro e do cinema, raramente vemos nascimentos. Há inúmeras personagens que morrem, mas não sabemos como vieram ao mundo. O nascimento está ligado ao corpo feminino e as peças sempre foram dominadas por visões masculinas, seja na dramaturgia, seja na encenação”, observa a atriz.
Por isso, é significativo “começar tudo outra vez” e experimentar essas novas possibilidades. Ao redor da mesa, tem-se liberdade para imaginar o nascimento de Édipo, por exemplo, ou de um potencial filho de Romeu e Julieta, se não tivesse havido um desfecho trágico para estas figuras. “A cada criança que nasce, surge uma nova esperança. E no mundo atual, diante de tudo o que estamos testemunhando, que responsabilidade temos, como comunidade dessa criança, em educá-la de forma política para que isso não falhe? Existe uma utopia nesse recomeçar”, enfatiza Raquel.
Como se diz em cena, “o parto é poder”; e na apresentação deste espetáculo, “educar uma criança é um ato político”. Que cada bebê que venha ao mundo esteja cercado de amor e tenha acesso aos direitos que qualquer ser humano merece. Que possamos aprender a recomeçar, sempre, e a defender essa utopia.
