Lisboa era uma urbe viável

Chuva Praça de Espanha Lisboa

Lisboa é uma cidade viável. Essa era a resposta que eu dava a brasileiros e portugueses sempre que me perguntavam por que havia deixado o Brasil, ou mais especificamente, o Recife e Olinda. Deixei para trás a sonoridade do frevo, o calor do mar, o abraço afetuoso dos amigos e familiares, e parte do meu coração ficou no Brasil.

Isso aconteceu há quase uma década. As perguntas dos brasileiros e portugueses eram diferentes: um se perguntava por que eu havia partido e o outro, por que eu havia chegado. Mas a resposta para ambas as indagações era simples e direta: Lisboa é uma cidade viável.

Ou pelo menos era.

Essa resposta única bastava e satisfazia a todos. Tanto brasileiros quanto portugueses compreendiam os motivos da mudança. Cada um, à sua maneira, valorizava a escolha pela segurança, tranquilidade, o custo acessível dos supermercados, das moradias, além da qualidade das escolas, saúde e transporte público.

Os antigos e novos habitantes de Lisboa percebiam na prática que a cidade era viável. É verdade que Lisboa tinha suas dificuldades, mas, no final das contas, continuava a ser um lugar onde se podia viver bem.

Uma cidade em que era possível viver, conviver, estudar, trabalhar, ser e estar, encontrando paz em parques, jardins, esplanadas, onde as crianças brincavam e os casais se beijavam à margem do Tejo, sob o sol que se pôs em Belém.

Viver em Lisboa era um sonho acessível, e nós, residentes de longa data e recém-chegados, tínhamos plena consciência disso.

E éramos imensamente felizes.

Lisboa era uma cidade viável para se viver e conviver, para estudar e trabalhar.

Até que um dia triste, Lisboa decidiu deixar de ser viável. Um lugar que antes permitia ser quem se quisesse e estar onde se desejasse, se transformou em um destino para visitas, uma cidade que só servia para escalas e conexões, nunca mais um destino final.

Lisboa se tornou uma cidade cenográfica, como as dos parques da Disney, que à primeira vista parecem reais, mas logo se revelam surreais, vazias, sem essência. O cowboy não sabe montar, o pirata tem um olho bom sob o tapa-olho, o super-herói não possui superpoderes, enquanto a montanha-russa gira sem levar a lugar algum, e o castelo não tem princesa, rei ou rainha.

A nova Lisboa é uma Disneylândia: a Lisbolândia.

Nesta Lisbolândia, o fado virou conteúdo para reels, o Tejo se tornou instagramável, o bacalhau à brás tem gosto de plástico e os elétricos são a nova montanha-russa, saindo do nada para lugar nenhum, uma cidade onde os alojamentos são contados em leitos vagos, com aluguéis que passaram a ser diários, e o vizinho muda constantemente de rosto.

Uma cidade em constante check-in e check-out, pois nos parques temáticos, assim que o expediente termina, após a queima de fogos, todos vão embora. Ninguém permanece. Os portões se fecham e o que antes era uma vibrante respiração de vida agora é apenas o silêncio sombrio de uma cidade fantasma.

Onde eu, você e os outros lisboetas não somos moradores, mas hóspedes.

Num dia triste, Lisboa decidiu deixar de ser viável para os velhos e os novos lisboetas.

A transformação da Lisboa viável em Lisbolândia é consequência da pandemia que afetou outras cidades europeias, criando a Madrilândia, Barcelonândia, Parislândia e diversas cidades temáticas, todas semelhantes, enfrentando os mesmos desafios, homogeneizando cenários e empobrecendo a rica experiência de viajar.

Uma pandemia impulsionada por interesses econômicos sem escrúpulos, que castigou os residentes, obrigando-os a deixar suas casas, numa expulsão em larga escala motivada pelo aumento obsceno dos aluguéis, pela inviabilidade da rotina e pela triste certeza de que a vida nas novas cidades temáticas não é apenas menos possível, mas se tornou impossível.

Os residentes enganados por discursos de ódio, que defendem uma Lisboa, Madrid, Barcelona ou Paris destinada apenas aos seus cidadãos, enquanto secretamente promovem a conversão dessas cidades em parques temáticos.

Aqueles que propagam o ódio, com certeza, não odeiam apenas a mim, mas não prezam por ninguém. E mesmo assim, conseguem convencer a população a apontar o dedo para os imigrantes, para o “outro”, para o diferente, perseguições que se repetem desde tempos bíblicos, quando eram responsabilizados pelas pragas e desastres naturais. Hoje, são os turistas, os fast-imigrantes com prazo de validade que se tornam o inimigo público número um nas próximas vinte e quatro horas.

Imigrantes e turistas se tornaram uma distração para desviar o olhar de mais um prédio sendo derrubado, pois cada vez que se ouve um clamor por Lisboa para os lisboetas, uma loja tradicional encerra para dar espaço a um hotel.

A saída não está em expulsar imigrantes ou rechaçar turistas, isso não vai desmantelar Lisbolândia para devolver a velha Lisboa. Esse caminho não teve sucesso em lugar nenhum, apenas retardou uma solução que exige reflexão, resistência, ação e a capacidade de não se deixar distrair pela cacofonia, enquanto o estrago continua a ocorrer nas sombras.

Até lá, a Lisboa viável que eu conhecia se desfaz, e a pergunta agora é outra, feita novamente por portugueses e brasileiros curiosos para entender por que ainda estou aqui, por que não desisti da Lisbolândia e voltei ao Recife e a Olinda, cidades com seus problemas, muitos problemas, é verdade, mas ainda assim reais, e não um triste parque temático.

E a resposta é que até agora sigo em busca de uma resposta.


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Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 51 anos, há seis em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

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