É um fenómeno silencioso gerado pela crise da habitação em Lisboa. Almada foi o concelho que, conforme os Censos de 2021, mais novos residentes acolheu provenientes de Lisboa apenas no ano anterior, totalizando 3592 pessoas. Este número contribuiu para que Almada se tornasse atualmente o concelho mais populoso da Península de Setúbal, com 177 238 habitantes.
Após Almada, Seixal, Setúbal, Palmela e Barreiro figuram como os destinos mais escolhidos pelos ex-lisboetas.
Do que estão a fugir? E que repercussões terá este fenómeno nessas cidades?
Viver numa casa melhor, com mais tranquilidade… mas perto de Lisboa
Rui Braz, 31 anos, e a sua esposa refletem as estatísticas pós-Censos 2021, mas corroboram os dados conhecidos. Mudaram-se para Almada em junho deste ano, saindo de uma casa arrendada na Misericórdia, Lisboa. “Estávamos à procura de comprar casa e não queríamos sair da Área Metropolitana de Lisboa”, explica Rui, que escolheu permanecer anónimo para esta reportagem.
A sua profissão influenciou a decisão, mas não foi o principal fator. “Sou contabilista, trabalho em regime híbrido e preciso ir a Lisboa durante a semana. Assim, era importante escolher um lugar com boas ligações de transportes, pois durante a semana não uso carro. O trânsito é sempre intenso, mas aqui os transportes públicos são eficientes. Essa foi a principal razão”, acrescenta.
Mais de 300 mil pessoas atravessam diariamente a Ponte 25 de Abril, segundo dados das Infraestruturas de Portugal. Com opções como metro, barco e comboio, Rui tem várias alternativas para chegar a Lisboa, salvo interrupções devido a greves.
Apesar da grande população do concelho, Rui acredita que “não é tão movimentado quanto o centro de Lisboa”. Ele descreve sua nova localização como “tranquila”. “Muitos pensam que Almada é caótica, o que é verdade devido ao trânsito, mas aqui a sensação não é a mesma. Não tenho problemas em encontrar estacionamento e, normalmente, há lugares disponíveis nas proximidades. A confusão que existe em Lisboa, com o turismo excessivo e a saturação, não está presente aqui”, observa.
Ele confessa que, como casal, poderiam ter comprado uma casa em Lisboa, mas nunca uma tão amplamente dimensionada. “Pelo preço que pagámos aqui, obtivemos uma área muito maior e com melhor qualidade de construção, já que as casas em Lisboa são mais antigas”, cita Rui.
“Principais compradores são de Lisboa”
Durante a maior parte do século XX, Almada caracterizou-se como uma cidade operária e industrial, marcada pela presença da Lisnave e um forte setor de trabalhadores da construção naval e metalomecânica. Hoje, com a desindustrialização e a proximidade à capital, o concelho adota um novo perfil: um espaço residencial para profissionais dos serviços e classes médias que trabalham frequentemente em regime híbrido na capital.
A crise habitacional em Lisboa, onde os preços por metro quadrado são quase o dobro dos praticados em Almada, acelerou essa transição, tornando a cidade um prolongamento natural da metrópole.
Entre 2001 e 2011, Almada experimentou seu maior crescimento populacional em quatro décadas: mais de 13 mil novos habitantes. Jorge Malheiros, geógrafo e investigador no IGOT da Universidade de Lisboa, destaca que, no início do século, “a oferta habitacional expandiu, melhorando a acessibilidade a Lisboa e reduzindo o congestionamento”, especialmente após a conclusão da circulação ferroviária na Ponte 25 de Abril, em 1999.
“O início da década trouxe um período de crescimento econômico, resultando em um aumento da atratividade”, conclui o especialista.
Jorge Malheiros
Além disso, Almada se firmou como “um destino importante para a população brasileira” na primeira década do século XXI. O número de brasileiros residentes cresceu de 1399 em 2001 para mais de 4300 em 2011.
Com o aumento da população, a demanda por habitação também cresceu, embora os preços continuem mais baixos se comparados a Lisboa: atualmente, o preço por metro quadrado em Almada é quase a metade do de Lisboa.
O preço médio por metro quadrado em Lisboa, embora tenha diminuído ligeiramente, estava em 4755 euros, enquanto em Almada era de 2503 euros no ano anterior.
Contudo, esse valor representa mais do que o dobro do registrado há 14 anos.
Após a pandemia de COVID-19, Almada assistiu a um aumento significativo dos preços por metro quadrado entre 2021 e 2022.
O aumento de 330 euros é atribuído por Luís Coelho, agente imobiliário, às novas demandas criadas pela pandemia e teletrabalho, com a procura por moradias e apartamentos que oferecem espaço ao ar livre.
Luís Coelho, agente imobiliário da Remax de Almada e Remax Metropole, relata que o mercado imobiliário na cidade cresceu nos últimos anos após o período de crise entre 2009 e 2013. Ele foi o responsável pela venda da casa de Rui Braz e destaca que muitos dos compradores são de Almada, mas a maioria vem de Lisboa.
No entanto, pode haver um risco de escassez de oferta devido à alta demanda, alerta ele.
“Os preços estão se estabilizando”, observa, não acreditando que haja uma queda no próximo ano. O motivo? “A oferta é insuficiente”.
Luís Coelho
O silêncio das autoridades locais contrasta com a rapidez com que esse fenômeno se desenvolve. Com as eleições autárquicas se aproximando, estarão os candidatos à Câmara Municipal de Almada prontos para discutir esse fenômeno? Que impactos poderá ter na vivência no concelho? Almada poderia se tornar a Lisboa do futuro? Nenhuma autoridade respondeu.
“Esse aumento populacional pode gerar maior dinamismo econômico e criação de empregos”, mas Jorge Malheiros alerta: “é essencial que esses empregos sejam em Almada ou na Margem Sul. Caso contrário, continuaremos a enfrentar congestionamentos”. O geógrafo também enfatiza a necessidade de que os serviços públicos sejam adequados para a população e que Almada continue a promover a aceitação e integração cultural.
O volte-face em Lisboa
Em contrapartida, Lisboa não tem experimentado crescimento populacional desde os Censos de 1981. Naquele ano, a cidade tinha 807 808 habitantes. Mais de 250 mil pessoas abandonaram a cidade ao longo de 40 anos. Quando foram realizados os últimos Censos, quatro anos atrás, o município registrou uma perda de 1937 habitantes, totalizando 545 796 habitantes.
O investigador destaca que Lisboa não cresceu nas décadas de 80, 90 e durante a crise financeira, devido à oferta limitada e cara de habitação. Com a melhoria de infraestruturas, como a IC19, N10, e a construção da CRIL, a população começou a se transferir para a periferia.
A saída dos jovens da cidade e a queda do número de nascimentos contribuíram para a perda populacional em Lisboa.
No entanto, essa tendência está começando a mudar, com projeções demográficas indicando que “Lisboa está começando a crescer” e que pode haver “uma estabilização demográfica” no futuro.
Nos últimos dez anos, após a crise financeira, a área central da cidade tornou-se mais atraente devido ao “boom de reabilitação”, impulsionado pelo turismo e por novas demandas no mercado imobiliário internacional. Assim, “o perfil do residente mudou, aumentando a presença de expatriados, imigrantes e turistas”, promovendo um leve revitalização populacional.
O que é que Almada tem?
De volta à casa de Rui Braz, ao pôr do sol, ele discute aspectos que facilitam a adaptação ao novo ambiente. “Estamos bem localizados, e para compras de última hora, podemos ir a pé. É importante para nós podermos sair e caminhar, e aqui temos essa facilidade. Podemos aproveitar o Parque da Paz e caminhar ao longo da Cova da Piedade ou até Cacilhas. Em Lisboa fazíamos isso, mas aqui é mais tranquilo.”
Rui acredita que Almada proporciona uma maior participação cidadã em comparação a Lisboa, ressaltando que “Almada tem um aplicativo para reportar ocorrências. Eu relatei um problema de sujeira no nosso bairro e rapidamente a limpeza foi efetuada”. Ele sugere que “se as pessoas se unissem mais e usassem essas aplicações, talvez a Câmara Municipal trabalhasse de forma mais eficiente”.
Quando questionado sobre um ponto negativo de viver em Almada, Rui responde prontamente: “O problema é o acesso a Lisboa de carro. Temos apenas a Ponte 25 de Abril, que está frequentemente congestionada em todos os horários.”
Como solução para o tráfego na Ponte 25 de Abril, há um plano em discussão para a construção de um túnel que ligue Trafaria a Algés. Em março de 2025, em uma reunião do Conselho de Ministros, o governo solicitou à Infraestruturas de Portugal a realização de um estudo sobre essa potencial ligação.
Além disso, na área de Almada, prevê-se a expansão do metro de superfície até à Costa da Caparica e Trafaria, com o estudo prévio programado para ser concluído até o final de 2026.

Um grande projeto intitulado “Parques Cidades do Tejo” também está sendo desenvolvido. O governo anunciou sua intenção de criar, em uma área de 4500 hectares, nos estaleiros da antiga Lisnave, mais habitação (26 mil novas casas), comércio, serviços e equipamentos culturais, incluindo uma Ópera junto ao Tejo. Esse projeto equivale a 55 vezes a Expo no Parque das Nações.
Entre o Tejo e o Atlântico, Almada está se transformando de uma simples margem a um novo centro para os lisboetas — refletindo, assim, a crise que Lisboa e o país enfrentam sem solução.
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